Um espectro ronda o mundo atual: o espectro do tédio. Ele se manifesta de diversas maneiras. Algumas de suas vítimas invadem o “shopping center” e, empunhando um cartão de crédito, comprometem o futuro do marido ou da mulher e dos filhos. A maioria opta por ficar horas diante da TV, assistindo a “reality shows”, os quais, por razões que me escapam, tornam interessante para seu público a vida comum de estranhos, ou seja, algo idêntico à própria rotinaconsiderada vazia, claustrofóbica.
O mal ataca hoje em dia faixas etárias que, uma ou duas gerações atrás, julgávamos naturalmente imunizadas a seu contágio. Crianças sempre foram capazes de se divertir umas com as outras ou até sozinhas. Dotadas de cérebros que, como esponjas, tudo absorvem e de um ambiente, qualquer um, no qual tudo é novo, tudo é infinito, nunca lhes faltam informação e dados a processar. Elas não precisam ser entretidas pelos adultos, pois o que quer que estes façam ou deixem de fazer lhes desperta, por definição, a curiosidade natural e aguça seus instintos analíticos. E, todavia, os pais se vêem cada vez mais compelidos a inventar maneiras de distrair seus filhos durante as horas ociosas destes, um conceito que, na minha infância, não existia. É a idéia de que, se a família os ocupar com atividades, os filhos terão mais facilidades na vida.
Sendo assim, os pais, simplesmente, não deixam os filhos pararem. Se o mal em si nada tem de original e, ao que tudo indica, surgiu, assim como o medo, o nojo e a raiva, junto com nossa espécie ou, quem sabe, antes, também é verdade que, por milênios, somente uma minoria dispunha das precondições necessárias para sofrer dele. Falamos do homem cujas refeições da semana dependiam do que conseguiria caçar na segunda-feira, antes de, na terça, estar fraco o bastante para se converter em caça e de uma mulher que, de sol a sol, trabalhava com a enxada ou o pilão. Nenhum deles tinha tempo de sentir o tédio, que pressupõe ócio abundante e sistemático para se manifestar em grande escala. Ninguém lhe oferecia facilidades. Por isso é que, até onde a memória coletiva alcança, o problema quase sempre se restringia ao topo da pirâmide social, a reis, nobres, magnatas, aos membros privilegiados de sociedades que, organizadas e avançadas, transformavam a faina abusiva da maioria no luxo de pouquíssimos eleitos.
O tédio, portanto, foi um produto de luxo, e isso até tão recentemente que Baudelaire, para, há século e meio, descrevê-lo, comparou-se ao rei de um país chuvoso, como se experimentar delicadeza tão refinada elevasse socialmente quem não passava de “aristocrata de espírito”.
Coube à Revolução Industrial a produção em massa daquilo que, previamente, eram raridades reservadas a uma elite mínima. E, se houve um produto que se difundiu com sucesso notável pelos mais inesperados andares e ecantos do edifício social, esse produto foi o tédio. Nem se requer uma fartura de Primeiro Mundo para se chegar à sua massificação. Basta, a rigor, que à satisfação do biologicamente básico se associe o cerceamento de outras possibilidades (como, inclusive, a da fuga ou da emigração), para que o tempo ocioso ou inútil se encarregue do resto. Foi assim que, após as emoções fornecidas por Stalin e Hitler, os países socialistas se revelaram exímios fabricantes de tédio, único bem em cuja produção competiram à altura com seusrivais capitalistas. O tédio não é piada, nem um problema menor. Ele é central. Se não existisse o tédio, não haveria, por exemplo, tantas empresas de entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas. Seja como for, nem esta nem soluções tradicionais (a alta cultura, a religião organizada) resolverão seus impasses. Que fazer com essa novidade histórica, as massas de crianças e jovens perpetuamente desempregados, funcionários, gente aposentada e cidadãos em geral ameaçados não pela fome, guerra ou epidemias, mas pelo tédio, algo que ainda ontem afetava apenas alguns monarcas?
ASCHER, Nélson, Folha de S. Paulo, 9 abr. 2007, Ilustrada. (Texto adaptado)
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS
Questão 01
“Como o rei de um país chuvoso”
O título do texto contém, sobretudo,
A) uma alusão à antítese entre a facilidade de provimento das necessidades materiais
e o vazio decorrente do ócio e da monotonia pela ausência de motivos por que
lutar.
O mal ataca hoje em dia faixas etárias que, uma ou duas gerações atrás, julgávamos naturalmente imunizadas a seu contágio. Crianças sempre foram capazes de se divertir umas com as outras ou até sozinhas. Dotadas de cérebros que, como esponjas, tudo absorvem e de um ambiente, qualquer um, no qual tudo é novo, tudo é infinito, nunca lhes faltam informação e dados a processar. Elas não precisam ser entretidas pelos adultos, pois o que quer que estes façam ou deixem de fazer lhes desperta, por definição, a curiosidade natural e aguça seus instintos analíticos. E, todavia, os pais se vêem cada vez mais compelidos a inventar maneiras de distrair seus filhos durante as horas ociosas destes, um conceito que, na minha infância, não existia. É a idéia de que, se a família os ocupar com atividades, os filhos terão mais facilidades na vida.
Sendo assim, os pais, simplesmente, não deixam os filhos pararem. Se o mal em si nada tem de original e, ao que tudo indica, surgiu, assim como o medo, o nojo e a raiva, junto com nossa espécie ou, quem sabe, antes, também é verdade que, por milênios, somente uma minoria dispunha das precondições necessárias para sofrer dele. Falamos do homem cujas refeições da semana dependiam do que conseguiria caçar na segunda-feira, antes de, na terça, estar fraco o bastante para se converter em caça e de uma mulher que, de sol a sol, trabalhava com a enxada ou o pilão. Nenhum deles tinha tempo de sentir o tédio, que pressupõe ócio abundante e sistemático para se manifestar em grande escala. Ninguém lhe oferecia facilidades. Por isso é que, até onde a memória coletiva alcança, o problema quase sempre se restringia ao topo da pirâmide social, a reis, nobres, magnatas, aos membros privilegiados de sociedades que, organizadas e avançadas, transformavam a faina abusiva da maioria no luxo de pouquíssimos eleitos.
O tédio, portanto, foi um produto de luxo, e isso até tão recentemente que Baudelaire, para, há século e meio, descrevê-lo, comparou-se ao rei de um país chuvoso, como se experimentar delicadeza tão refinada elevasse socialmente quem não passava de “aristocrata de espírito”.
Coube à Revolução Industrial a produção em massa daquilo que, previamente, eram raridades reservadas a uma elite mínima. E, se houve um produto que se difundiu com sucesso notável pelos mais inesperados andares e ecantos do edifício social, esse produto foi o tédio. Nem se requer uma fartura de Primeiro Mundo para se chegar à sua massificação. Basta, a rigor, que à satisfação do biologicamente básico se associe o cerceamento de outras possibilidades (como, inclusive, a da fuga ou da emigração), para que o tempo ocioso ou inútil se encarregue do resto. Foi assim que, após as emoções fornecidas por Stalin e Hitler, os países socialistas se revelaram exímios fabricantes de tédio, único bem em cuja produção competiram à altura com seusrivais capitalistas. O tédio não é piada, nem um problema menor. Ele é central. Se não existisse o tédio, não haveria, por exemplo, tantas empresas de entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas. Seja como for, nem esta nem soluções tradicionais (a alta cultura, a religião organizada) resolverão seus impasses. Que fazer com essa novidade histórica, as massas de crianças e jovens perpetuamente desempregados, funcionários, gente aposentada e cidadãos em geral ameaçados não pela fome, guerra ou epidemias, mas pelo tédio, algo que ainda ontem afetava apenas alguns monarcas?
ASCHER, Nélson, Folha de S. Paulo, 9 abr. 2007, Ilustrada. (Texto adaptado)
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS
Questão 01
“Como o rei de um país chuvoso”
O título do texto contém, sobretudo,
A) uma alusão à antítese entre a facilidade de provimento das necessidades materiais
e o vazio decorrente do ócio e da monotonia pela ausência de motivos por que
lutar.
B) uma comparação que trata da dificuldade de convivência entre a opulência do
poder e a manipulação decorrente do consumismo exacerbado.
C) uma metáfora relacionada à coabitação da angústia existencial contemporânea
com a busca de sentidos para a vida, especialmente entre os membros da
aristocracia.
D) uma referência ao conflito advindo da solidão do poder, especialmente no que se
refere ao desânimo oriundo da ausência de perspectivas para a vida
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS
O texto NÃO menciona como causa para a presença do tédio na sociedade moderna
A) a ausência de atividades físicas compulsórias relacionadas com a sobrevivência.
B) a facilidade de acesso aos bens que provêem as necessidades físicas primárias.
C) a limitação da mobilidade física e privação de certas liberdades.
D) a proliferação de empresas e de espaços de lazer e de consumo.
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS - Questão 03
A alternativa em que o termo destacado NÃO está corretamente explicado entre
parênteses é:
A) “[...] aos membros privilegiados de sociedades que [...] transformavam a faina
abusiva da maioria no luxo de pouquíssimos eleitos.” (linhas 30-32) (A CARÊNCIA,
A MISÉRIA)
B) “Basta [...] que à satisfação do biologicamente básico se associe o cerceamento
de outras possibilidades [...]” (linhas 41-43) (A RESTRIÇÃO, A SUPRESSÃO)
C) “[...] os países socialistas se revelaram exímios fabricantes do tédio[...]” (linhas 45-
46) (EMINENTES, PERFEITOS)
D) “Um espectro ronda o mundo atual: o espectro do tédio.” (linha 1) (UM
FANTASMA, UMA AMEAÇA)
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS - Questão 04
“O mal ataca hoje em dia faixas etárias que, uma ou duas gerações atrás, julgávamos
naturalmente imunizadas a seu contágio.” (linhas 8-9)
A expressão destacada pode ser substituída sem alteração significativa do sentido por:
A) a uma ou duas gerações.
B) acerca de duas gerações.
C) há uma ou duas gerações.
D) por uma ou duas gerações.
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS - Questão 05
“Se não existisse o tédio, não haveria, por exemplo, tantas empresas de
entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas.” (linhas 47-49)
Alterando-se os tempos verbais, haverá erro de coesão em:
A) Não existindo o tédio, não haveria, por exemplo, tantas empresas de
entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas.
B) Se não existe o tédio, não terá havido, por exemplo, tantas empresas de
entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas.
C) Se não existir o tédio, não vai haver, por exemplo, tantas empresas de
entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas.
D) Se não tivesse existido o tédio, não teria havido, por exemplo, tantas empresas de
entretenimento e tantas fortunas decorrentes delas.
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS - Questão 06
A supressão da vírgula implica alteração do sentido em:
A) “Coube à Revolução Industrial a produção em massa daquilo que, previamente,
eram raridades reservadas a uma elite mínima.” (linhas 37-38)
Coube à Revolução Industrial a produção em massa daquilo que previamente eram
raridades reservadas a uma elite mínima.
raridades reservadas a uma elite mínima.
B) “Nenhum deles tinha tempo de sentir o tédio, que pressupõe ócio abundante e
sistemático [...]” (linhas 26-27)
Nenhum deles tinha tempo de sentir o tédio que pressupõe ócio abundante e
sistemático [...]
C) “O tédio não é piada, nem um problema menor.” (linha 47)
O tédio não é piada nem um problema menor.
D) “[...] também é verdade que, por milênios, somente uma minoria dispunha das
precondições necessárias [...]” (linhas 21-23)
[...] também é verdade que por milênios somente uma minoria dispunha das
precondições necessárias [...]
Questão 01: B
Questão 02: D
Questão 03: A
Questão 04: C
Questão 05: C
Questão 06: A
Questão 06: A
Muito obrigado, em nome do 1°C, agradecemos a sua colaboração para passarmos de ano
ResponderExcluirmuito obrigado
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